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Lara é também escritora. Abaixo, contos selecionados do seu livro, que está no prelo, "Uma Humana Extraterrerizada - contos sobre uma busca".

Alguns dos contos desse livro são base dramatúgica de seu solo teatral "O Meu Lugar!

 

Esconde-Esconde

 

 

O cantar das pererecas faz eu me lembrar da minha vó. Ela tinha pavor desse bichinho. Eu chego a me sentir culpada por não honrar sua reação. Porque amo o som que elas fazem. Soa como um pedido de aconchego e carinho. Talvez seja saudade de uma época que eu não tinha nem ideia do que viria pela frente. 

 

Poucos anos depois, ouvir o coaxar das pererecas, me pareciam um pedido melancólico para aquietar-me num colo morno, e, como se possível, me esquecer numa outra pessoa. Só que enquanto eu tentava escapar de mim, mais pra dentro eu ia.

……………

Minha intenção aqui é falar sobre meu primeiro beijo. 

Bonitinho né!? 

Pois é…

…não estou conseguindo. 

Espera, preciso respirar um pouco.

…………..

 Vou ter que mergulhar mais adiante para retornar à origem. 

Olhando de hoje para o meu passado de relacionamentos, posso ver muito de quem fui e no que transformei. E vejo, nitidamente, que a gente reflete no outro, tudo aquilo que não consegue enxergar em si mesma. E, como se não bastasse, vemos no outro um reflexo embaçado de nós mesmas.

Antes eu era uma menina, e porque não, uma criança que só via e desejava o outro, nessa época: não via nem o reflexo embaçado. O que de certa maneira, era uma fuga de mim mesma. Porque os sinais de mim no reflexo do outro sempre estiveram ali. “Sabe como é!?” Aqueles sinais que percebemos ao não racionalizar o que sentimos e que, quase arrogantemente, ignoramos!? 

Ah, se eu pudesse ter percebido antes todas as oportunidades que tive de ter encontros comigo mesma, através do meu reflexo no outro, acho que teria tomado de volta aquela imagem que o reflexo me dava e teria abraçado ela com tanta força que a devolveria para dentro. 

Isso se eu pudesse ver que ao mergulhar num relacionamento, enquanto esquecia de mim, tinha a oportunidade de ver o que faltava em mim. Isso teria me poupado muito sofrimento. Mas acho que não havia outra maneira de chegar até aqui, ou, até logo ali na frente, porque reflexos sempre haverão.

Acho que, com o tempo, fiquei acostumada a sofrer. 

Fico imaginando o porquê eu buscava relacionamentos destrutivos. 

Muitos anos depois eu comecei a ter uma ideia deste porquê! 

Estou aqui tentando organizar minhas emoções. E consigo perceber que flutua uma sensação no meu corpo de que não existe um par que se complete, sem que os dois já estejam, minimamente, conscientes de que estão incompletos e que o outro “só serve” para me mostrar aquilo que falta em mim mesma. Não, não somente para isso,- é que não encontrei uma expressão adequada -, lamento. Não é serventia num sentido prático de servir e descartar. Mas sim, como num espelho generoso. 

Eu pego o espelho na mão, com o desejo de me enxergar. Olho e vejo tudo ali, o que eu gosto e o que, ainda, não consigo lidar. 

E, inevitavelmente, me vem a pergunta: “faço o que com essas imagens?”

Eu me escondia dentro de mim mesma. 

O engraçado que até meu primeiro beijo foi me escondendo, sinais irônicos que a vida nos dá. Sim, o beijo foi de cinema, pelo menos para mim.

Durante anos, tive muita dificuldade de me olhar no espelho, literalmente. Muitas vezes senti ânsia de vômito e vontade de socar aquele reflexo. Era como se não fosse eu ali. Eu não me reconhecia. Era como se aquela imagem que eu via no espelho não me quisesse ali. Aí, eu saia desesperada procurando uma imagem que me mostrasse quem eu era. Ah sim, em outras pessoas. Essas pessoas pareciam poder me salvar de mim mesma. Quanta ingenuidade. Ah, se eu soubesse que eles continuariam refletindo o mesmo que eu via no meu espelho, a minha própria imagem, eu já teria me buscado em mim mesma.

-“Ou será que no fundo eu sabia que ninguém salva ninguém!?” 

-“Acho que não sabia.” 

Nesta verdade, eu não sabia quem eu era, só me fundia a figuras que intensificaram a minha confusão e incertezas. 

Eu virava mesmo, literalmente, uma confusão. 

Um exercício de carência sufocante, não só para a vítima, mas, principalmente para mim. 

Me sentia verde e musguenta. 

Muitos anos mais tarde, pude entender essa imagem que eu mantinha introspectiva. Uma auto compaixão irritante de olhar hoje em dia. 

Nada como umas rugas nos olhos para enxergar melhor. Hoje posso acolher aquela menina ferida que não sabia de nada.

Depois de tanto me sentir uma pessoa que não fazia parte do mundo, comecei a  buscar relacionamentos que fossem os mais estranhos e diferentes que eu pudesse encontrar. Tudo o que não me permitisse viver algo comum, eu buscava. No entanto, não havia consciência ali. Só um instinto que criava situações onde eu acabava solitária. 

Eu podia ver as minhas mãos de crianças, só que socada de uma carne que não tinha como negar, era um corpo de adulta. Só o corpo mesmo. Eu tinha medo de crescer e ficar flutuando sem saber para onde ir. Pelo menos, ali naquela infância tardia, eu estava acostumada e conhecia os caminhos para andar dentro de mim mesma.

Tenho saudade de um certo estado de melancolia que vibrava aqui, e que me levava até quando minha consciência estava dormindo. 

- “Será que naquele momento eu poderia ter acordado daquele estado de sonambulismo?” 

- “Não sei, isso me confunde.” 

Na verdade, acho que ainda durmo em muitos aspectos. No entanto, agora consigo vislumbrar quando estou em apuros, em vez de achar que encontrei o par perfeito. “Sabe como é!?” Aquele que iria preencher tudo o que aparentemente não tinha dentro de mim. 

Acho que o que mais aprendi foi:  

amar e esquecer de mim, não é amar. 

(parece uma frase pronta de redes sociais - risos)

Hoje estou tendo um relacionamento sério comigo mesma.

………….

Ainda houve o antes: ‘o primeiro beijo.’ 

Ufa, acho que vou conseguir olhar para lá! 

Sim, foi de cinema. E eu tinha apenas 09 anos de idade. Minha sexualidade surgiu muito cedo. Eu já tinha desejos que não podia compreender. 

Foi numa brincadeira de esconde-esconde. Era um domingo ensolarado e nós brincávamos na rua, naquela época a rua não representava os perigos que representam hoje em dia. Havia muitos amigos, os quais tenho em mim até hoje. Naqueles tempos eu tinha uma grande facilidade de me agradar das pessoas. Talvez a menos julgadora de todas. Nada como a leveza de alguns aspectos da infância.

Ele era escoteiro e era amigo de um vizinho nosso. Me escondi atrás do muro branco das vizinhas mau humoradas do lado da nossa garagem. De repente, ele se escondeu do meu lado. Uma identificação já era o suficiente. Eu quis sair correndo, mas um formigamento na minha barriga e nos meus pés me deixaram imóvel. Como se eu estivesse trancada ali dentro daquela imagem e um eu verdadeiro, estivesse com tanto medo de aparecer, que quis fugir para aquele outro corpo. 

Talvez tenha começado neste dia a mania de tentar fugir de mim mesma. Mas eu não tinha consciência disso.

Aquele momento foi o mais emocionante da minha breve história, pelo menos até ali. 

Meu coração disparou, ele parecia misterioso e forte. Na realidade, era só um menino de 12 anos de idade, tão ingênuo e perdido quanto eu. Eu morria de vergonha e estava apaixonada, não sabia nem mais meu nome. 

Esse sentimento de por um breve instante “perder a memória”, foi um forte sinal do que mais viria pela frente. 

Havia também um certo sentimento de culpa. Meu pai não me permitia namorar. Imagina, eu era uma criança de 09 anos. Mas hoje eu sei que nossos desejos são parte de nós, desde o princípio. 

E com uma coragem que só pode ser sentida por alguém tão pequeno, o menino se fez presente. Para mim ele parecia um personagem de guerreiro, vindo de um filme romântico, onde a mocinha é salva pelo mocinho. 

Sim, eu era bem desprovida. Mas mudei com o tempo, pelo menos um pouco.

Ele me olhou com seus olhos castanhos, cor de mel profundos e disse: 

- “Posso te beijar?” 

Eu comecei a rir, era nervosismo, e também porque aquilo estava sendo muito divertido. Na verdade, eu achei engraçado, porque para mim era uma brincadeira. Ele ficou parado me olhando, e me atravessando com seu olhar, ele me transmitia segurança. 

Acho que por dentro ele estava tremendo que nem eu. 

Então, em meio as risadas, minhas, e sem que eu tivesse força interior para me mexer, aquele menino me beijou, e foi de um jeito que eu nunca esqueci. 

Aquela audácia de ser quem se é! 

Acho que na verdade, deve ter sido somente um leve encostar entre os nossos jovens lábios macios, o famoso ‘selinho’, mas para mim, era como se eu tivesse tirado a roupa no meio da rua. 

Eu quase morri de vergonha e fiquei um tanto apavorada, saltando para trás como uma lagartixa assustada. 

“O que era aquilo que eu estava sentido e acabava de experimentar!?” 

Neste momento, eu somente sorri, deixei de achar engraçado e senti meu corpo todo pulsar. 

Então, lembrei que estava numa brincadeira de esconde-esconde. Olhei para frente, tentando evitar o seu olhar e percebi que era a minha vez de correr. Saí correndo para bater a parede branco do outro lado da rua.

Gritei como se quisesse ensurdecer o que sentia: - “ 1, 2, 3, bati.”

 Ele ficou lá sentado me olhando e, logo em seguida, voltamos a brincar juntos. 

Eu me apaixonei por ele, perdidamente.

No outro dia ele voltou na nossa rua e me pediu em namoro. 

E eu aceitei. 

Então, fomos brincar, sem muita diferença na relação que antes era só de dois amigos. Mas a gente passeava pela quadra de mãos dadas, o que me fazia sentir como se já fosse uma adulta. Lógico que meu pai e minha mãe não sabiam. Aliás, se estiverem lendo este livro, vão ficar sabendo agora, espero que não me deixem de castigo. (risos doces) 

Nos próximos dias, nós continuamos namorando. 

E então, nunca mais nos beijamos. 

Tem ações que só precisam acontecer uma única vez para nos mostrar a nós mesmas.

Na realidade meu pai só permitiu que eu namorasse aos 15 anos de idade. Lembro quando pedi permissão para namorar. 

Ele disse: - “Depois que tu virares mocinha voltamos a falar nisso.” Mas eu nunca fui muito obediente. E também, a natureza gritou dentro de mim quando completei 11 anos. 

Foi o pavor do meu pai. 

……………..

O tempo passou, e enquanto meu corpo continuava amadurecendo, me emaranhei em relacionamentos que me davam a sensação inicial de que poderia tocar o invisível incomum. E eu acabava encontrando sentimentos absolutamente comuns dentro de mim. 

Parecia um porão sem saída. 

Então, criava uma sensação de surdez que me tirava do mundo. Como se pudesse socar a mim mesma e, assim, eu desapareceria. 

Onde estava tudo aquilo que antes, chamei de amor? 

Olhando hoje, me vejo naquele menino, como se pudesse revelar a mim, a minha alma, ‘aquela audácia de ser quem se é!’ E, na realidade, ainda tem muito daquela menina dentro de mim. As vezes queria que ela me devolvesse aquela pureza em ver a vida. 

Espera, estou buscando aqui em mim…

achei, essa pureza nunca morreu!

 

 

 

 Santa Surda

 

 

Houve tempos de surdez da alma.

 

Sentia que o silêncio tomava conta de mim. 

Desejava ficar surda. 

Que a surdez silenciasse o que havia em mim.

……….

Em outra cidade, quase outra vida, eu estava me separando de um dos amores que encontrei pelo meu caminho e que me ‘refletiram humanidades’. 

Aquele quarto era o único lugar que me fazia sentir dentro de mim mesma. Ainda estávamos arrumando. Eu gostava do quarto novo, me sentia bem, confortável, à vontade. 

Ali, tinha a sensação de que o mundo me esquecia

 e assim, eu podia me esquecer também,

 ficar invisível, sabe!? 

Era uma casa antiga que emanava sons de sua estrutura ancestral, os sons vinham de um tempo que se passou ali e por isso, ela, por si só, já trazia a nostalgia que parecia aprovar  o que eu sentia.

Fazia muito calor e eu quase podia invadir o tempo. Meu corpo se afundava em pequenas sensações, quase conseguia flutuar e tocar a divindade em mim, mas só me afundava na cama.  

E enquanto contemplava a janela antiga que revelava o céu nublado, minhas mãos verteram suor. Então, lembrei que já vi sobrevoar meu corpo olhando do teto do meu quarto. Que fiz volver a vida de um grilo. Que movi uma lata com a energia das mãos. Que vi o teto do quarto se abrir sobre minha cabeça. Que parei de tomar banho. E que entrei em túneis que chamei de Pi, para sair do mundo e encontrar a mim. 

Olhei de novo a janela e senti o ar ficando estranho, era como se eu não fosse daqui. E um silêncio tomou conta de mim. E eu desejei ficar surda, queria que a surdez silenciasse o que havia em mim. Foi como se a quietude de um abismo macio me trouxesse paz. Essa sensação me agradava às vezes, mas sempre havia algo que me levava um pouco mais abaixo, ou simplesmente me levava a lugar algum. Me trazendo desconforto e um certo medo. Parecia que a qualquer momento poderia ser engolida por algo que me observava  de dentro para fora ou de fora para dentro.

Então, dormi amortecida e acordei esmagada pela gravidade. 

Quanto mais o dia passava, mais eu me angustiava e ensurdecia. Precisei sair de casa naquele dia. Caminhei alguns passos e me encostei nas paredes, com vontade de sumir só um pouquinho, me desintegrar no ar e voltar para aquela casa invisível que eu sentia. 

Queria me sentir criança, e eu quis a infância de volta, diminuir, esvaziar. 

O ar estava estranho, sentia como se não fosse daqui. Talvez eu precisasse olhar o que a dor estava acobertando.

Porquê?

Durante muito tempo me senti uma extraterrestre, alguém que não era nativa deste planeta. Eu, realmente, não me encaixava em nada, lugar algum. Não pertencia, simplesmente. Foi também como se eu fosse invisível aos olhos daqueles outros que moravam aqui. Mas, o engraçado era que eu me identificava com a Terra. 

A Terra era viva e não me avaliava, nem esperava nada vindo de mim, aliás, ela esperava que eu devolvesse a nutrição que ela tentava me doar. Ela estava ali, presente, me sustentando, literalmente. Por quem eu não me sentia bem-vinda, era pela espécie que habitava a Terra, os seres humanos. Eu não conseguia perceber que existe um lugar para cada pessoa neste planeta, inclusive para mim. Então, para mim, era como se o planeta fosse mais capaz que seus habitantes. Já Ela, a Terra, eu podia sentir a sua “natureza abraçadeira”, ela tentava me acolher, sabe como é!? 

Eu acho que é porque a Terra é feita de vida pura, não tem ego, sabe!? 

Ela só é! 

O tempo foi passando e fui percebendo que esse ser redondo e cíclico, é uma escola propensa a mudar, conforme nós humanos, mudarmos também.

Consigo imaginar a terra um planeta de seres que não envelhecem, 

que voam, 

e que nem irão precisar falar…. 

 

 

 

Cíclica

 

 

Enquanto escrevo sinto esse aquecimento no colo, no colo do útero, ouço o vento deitada na rede verde desbotada, na varanda amarela da minha casinha. Vejo o temporal chegando, esses pingos estão molhando a folha (...)

 

(…) - “vai borrar”

É domingo de carnaval, ainda pandêmico, e vem de longe o som de um tambor solitário, ele embala a minha rede, só que essa balança num ritmo próprio, sem obedecer essa batida descompassada.

“Será que vem aí uma tempestade?” 

O vento fresco vem de frente ao meu rosto, meus óculos também estão pingados, minha visão está turva, mas aqui dentro tem uma pulsação quente. 

“Será que existe esse “tal” de dentro e fora, ou, somos dentro e fora ao mesmo tempo?” 

Tem um cachorro ao longe latindo, uns pássaros cantando. 

“Será que estão gritando algo que não consigo entender?” 

- “Deixe vir e depois ir, meu amor, a tempestade trás limpezas profundas”. 

…………..

“Meus seios doem, os mamilos estão endurecidos, é meu corpo deixando para trás algo que não me pertence mais. Meu útero se contrai, acho que quer expulsar alguma coisa guardada nele”.

A maior parte da minha vida não tive ideia do que é ser uma pessoa cíclica, nunca me contaram. E, na verdade, não contaram porque também não sabiam explicar e talvez nem entender. No entanto, elas sabem, de alguma maneira, sobre esse poderoso instrumento natural, feito, mesmo, pela natureza.

Somos natureza, não é confortável, nem fácil, nem é para ser. 

Me parece que o propósito é crescer, e todo crescimento dói

Todo o mês é diferente, “antes pensava nem ser mais eu”, a diferença nesses dias atuais é que sinto estar em constante transformação, nunca parada. Isso dói, e muito e, também, é incrivelmente potente. 

Num sentido de potência orgânica, mesmo. 

…………..

  • “Vou ter que parar um pouco, acho que perdi algumas palavras, estão borradas (…) voltei, consegui secar a folha e me reconectar com essa Tempestade”.

…………..

Minha mãe não sabia como explicar, minhas avós não sabiam também, então como poderiam me passar essas vivências verbalmente? 

Elas somente lidavam com a “montanha russa”, com seus humores explosivos e ao mesmo tempo, doces, sem muitas palavras, um núcleo que habita em mim. 

“Acho que foi assim que me “explicaram” que sou cíclica, não dava para explicar de outro jeito, isso não vem do pensamento”. 

Elas viviam suas dores de cabeça, contrações no útero, seus sentimentos de medo, suas sensações de invisibilidade e, guardavam o poder de tocar uma espécie de sabedoria imaterial, espiralando um amor infinito dos seus corpos, queriam pegar toda a humanidade no colo e dizer: 

  • "Calma, onde vocês vão com tanta pressa? Olha aqui essa flor, olha aqui esse pequenino sentimento que nasce sem ninguém ver. Olha aqui, só olha e respira um pouco, comigo. Pára de correr e me obedece criança, vem aqui, olha, veja que aqui está também o universo. E aquilo lá, que você tanto corre para pegar, nem existe fora daqui, é só uma ilusão. Calma, escuta, é só uma ilusão. Pode confiar em mim: você vai ter que deixar ir para que possa estar aqui”.

Elas tinham e tem, sim, um grande poder nos seios, nas pernas, nas suas vaginas, e naquele aquecimento em seus ovários, que geraram toda a continuidade da nossa família. Sem elas não seria possível, nem eu estaria aqui escrevendo. Sem elas eu ainda seria algo somente imaterial que não estaria vivendo esta experiência alucinada de estar na terra. 

“Isso aqui é para gente de coragem!” 

Sim, sem eles também não seria possível, são muitos importantes. Mas, como a milênios a terra se tornou um lugar governado por eles, por seus grandes e poderosos feitos e ganhos, quero aqui pedir licença e ganhar meu lugar de volta, trazer esse amontoado de sentimentos, sensações e organicidade feminina, que também os compõem, mas eles não estão conscientes disso, não, todos eles. 

“Aliás, a humanidade não fala muito sobre isso, né?” 

Talvez seja medo - “Lembra que o medo é o oposto do amor”, sussurrou uma delas agora, aqui dentro, no ouvido esquerdo, não consegui identificar qual, mas isso não importa, elas não competem. Essas mulheres que me habitam, falam aqui dentro e dizem que posso falar bem alto ou bem baixinho, e até, se tiver vontade, ficar calada eu posso, faço questão de realçar a palavra: ‘vontade’. E que elas estão aqui comigo, não vão me abandonar. 

Essas mulheres querem que todas as pessoas ouçam o Silêncio. 

Minha avó acabou de sussurrar do lado esquerdo, de dentro para fora do meu ouvido: 

- “As pessoas gostam de fofoca, minha filha (risos). Não te preocupes que a notícia vai se espalhar. Deixa que essa chuva e esse vento leve-as. E os trovões causem um rebuliço que não vão entender, porque não é sobre entender. Segue, meu anjo”.  

Sorrio, mas estou bem cansada….

Bem cansada de falar e não ser ouvida, principalmente por eles, aqueles que ainda não entenderam serem também femininos. 

  • “Oh pessoal, vamos nos equilibrar um pouquinho mais? 

Por favor, podemos tanta coisa, somente sendo”.

Aquele medo da agressividade que sentia dentro de mim, era algo que flutuava na inconsciência de ser cíclica, não era fraqueza, era um poder, redondo e às vezes, áspero, eu só não sabia disso ainda.

…………..

Lembro que quando eu era somente uma criança, eu pintei um absorvente da minha mãe de canetinha vermelha, peguei de um estojo de pintura que tinha, porque minha mãe gosta de criar. E então, como eu queria muito poder namorar e sentir o sangue me empoderando, sem saber que era isso que ele - o sangue - faria um dia, eu fingi ter menstruado. 

É até engraçado pensar nisso hoje.

Lembro que um dia perguntei para o meu pai, quando eu iria poder namorar, e ele respondeu, depois de dar um quase imperceptível, salto de choque: - ”Quando tu menstruares, minha filha. Ainda falta muito tempo, vai brincar”. 

Acho que acreditava que eu ia menstruar lá perto dos 15 anos de idade. Eu me adiantei, foi antes dos 12 anos. É, minha sexualidade acordou cedo. E, me compadeço do meu pai, eu fui bem namoradeira depois que cresci e finalmente menstruei. 

Não tenho como esquecer o dia que menstruei, corri até meu pai e disse: - “Menstruei, pai. Posso namorar agora!?” Ele virou para mim, com seus olhos azuis arregalados, deve ter tomado o maior susto de sua vida, e me disse qualquer coisa para me “desconversar”. 

Imagina, eu era só uma criança. 

Mas eu fiquei com muita raiva dele. Todo aquele plano de fazer descer meu sangue de mulher, - minha mandinga com canetinhas vermelhos -, foi jogada fora.

Ah, se eu tivesse consciência, de alguma maneira mágica ou algum tipo de premonição tivesse se revelado, que aquele período foi um dos mais, “espera aí, deixe eu pensar”, talvez: leves, tranquilos, suaves, protegidos. Estou aqui tentando achar uma palavra que descreva aquele tempo. “Espera aí … não quero aqui entrar em outras questões, eu também me sentia não vista de alguma forma, como uma pequena mulher, ou melhor, uma futura mulher, ou ainda posso dizer, uma menina que já se sentia uma mulher”. Mas não encontrei a palavra. 

  • “Calma minha filha, para quê tanta pressa?” - disse minha vó no ouvido esquerdo, de dentro para fora.
  • “Vó, minha ansiedade infantil não me permitiu ficar somente ali. E agora, em plena “adultice” eu luto para fazer aquela menina voltar, só que deixando a sua pressa aquietada”. 

E foi naquele entardecer chuvoso que eu pintei o absorvente, ainda guardo a sensação de imaginar o meu corpo adulto e bem feminino. Eu olhei os meus seios que ainda não tinham crescido no espelho, não entendia o que estava acontecendo. Mas podia sentir uma presença vívida dentro de mim, um tanto confusa e que fazia todos os meus poros e vísceras vibrarem. Eu sentia uma espécie de furação envergonhado de ser tempestade e, então, me escondi atrás dos cabelos longos,- por muito tempo. Naquele dia chuvoso, minha mãe estava limpando o banheiro. Era período de férias para mim, não para ela

Alguns minutos antes eu peguei o absorvente da bolsinha da minha mãe e a canetinha vermelha no estojo, fazendo o mínimo de barulho, porque não queria causar alarde. Queria fazer uma surpresa para minha mãe, mostrando que agora eu era uma mulher como ela. Então, eu me escondi no meu quarto, fechei a porta e num ato de coragem infantojuvenil, peguei o absorvente, a canetinha e pintei, foi como num ritual de passagem,- adiantado pela ansiedade, também, infantojuvenil -, eu pude sentir o meu pequeno útero se antecipar e vibrar. Na frente do espelho, coloquei o absorvente dentro da calça de moletom que usava, no forro da calcinha, é lógico, e fui até minha mãe, ‘que ainda limpava o banheiro’, fui com uma empáfia de adulta falsa, me sentando no vaso sanitário, que me pareceu naquele instante, um trono do meu coroamento como mulher. 

Minha mãe falava sobre alguma coisa bem infantil comigo e limpava o vidro com muito vigor,- o que ela sempre teve em suas ações. Eu fiz tudo o que pude para evidenciar o falso sangue da calcinha, porque minha mãe estava muito concentrada em deixar o espelho brilhando. Até que, finalmente, ela viu e, adivinha, riu quase sem querer, acho que foi mais um sorriso do que propriamente um riso descomprometido, não foi por mal, no lugar dela eu também teria sorrido, ou até gargalhado mesmo, porque imagina a situação!? 

Então, eu morri de vergonha e arranquei o absorvente, jogando direto no lixo. Não tinha jeito, ainda era uma criança, tinha que esperar mais. 

Minha mãe percebeu minha frustração e disse algo assim: 

- “Minha filha, quando for tua hora de virar mocinha tu vais virar. Para que tanta pressa? Te acalma, guria”. 

Já habitava em mim essa vontade de ser cíclica, dançando com a inconstância, talvez ali eu até tivesse uma espécie de “consciência-inconsciente” de quem eu era. Eu não sabia explicar, mas sabia sentir e era poderoso o que eu sentia. Naquele corpo pequeno eu tinha uma potência vibrante e queria abraçar o mundo, com o movimento espiralado daquele instante. 

………..

Os anos passaram um pouco, e não que eu quisesse ser maior, eu só queria poder ser eu. Mas havia uma outra inconsciência, fora de mim, predominante, que dizia: 

- “Uma mocinha não pode se comportar assim”. 

Ai que dor, então socava a mim mesma para não me espalhar demais. 

O tempo passou mais um pouco e fui sumindo para o mundo, só que aqui dentro, - só quem vive sabe -, fiquei cada vez mais ancorada e profunda, sem saber da lógica do pensamento sobre isso. Aqui fora tentei por diversas vezes me encaixar, que desastre. Não deu certo, nem tinha como dar.

 

…………

 

  • “Acho que vai faltar luz, a tempestade está forte, estou assustada”. 

Será que tem haver com esse meu mergulho? 

Estaria Ela me dando mais respostas?

  • “Espera aí, Tempestade, não vai embora, limpa-me mais um pouco, ainda tenho algumas questões”. 

…………

Lembro que quando cresci um pouquinho eu questionava, em silêncio: 

- “Porque não dão importância para isso aqui que estou sentindo? 

Porque meu corpo cresce tão desgovernado? 

Porque quando tenho vontade de chorar, gritar ou falar coisas, me tratam como se isso fosse “coisa de criança?””.

  • “Eu já cresci, não sou mais criança (...)”

O sentir é capaz do saber, isso não é um privilégio do pensar

  • “Vê se você consegue perceber”: 

“É como se os ouvidos pudessem captar o cheiro, como se a voz pudesse tocar, e como se o sentir pudesse agir, falar e ser ouvido.” 

  • “E podem.”

………..

Muito tempo passou, e finalmente “virei mocinha”, e agora sinto que os ciclos que me trouxeram até aqui, poderiam ter sido mais aproveitados. 

- “Não estou aqui para me compadecer de mim mesma”. 

É que na minha verdade, gostaria de ter ficado mais tempo comigo mesma, me namorando, só me observando, percebendo o que meu corpo me contava. 

- “Calma, tu faz isso hoje meu amor, ainda dá tempo”. 

Ah se eu tivesse fechado os olhos e respirado, se eu tivesse consciência de que era cíclica, teria entrado na tempestade e confiado na natureza que me habita. 

Epa, a tempestade nunca esteve fora! 

- “Então, na verdade, eu sempre fui uma tempestade inconstante?” 

-”Sim”.

Era tão profundo que não tinha como conter,  e por não saber do que meu corpo me falava, e por não saber como, principalmente, ouvir, por diversas vezes caí num buraco surdo. Caia, porque assim o mundo à volta me empurrava, principalmente aqueles Eles, que também não sabiam de si, diziam: - “Você é descontrolada!” 

O que faz a falta de conhecimento do feminino.

“Você pode perceber!?” 

Enfim, o que veio depois de aprender a me ouvir e a ativar essa feiticeira em mim, faz eu pertencer a uma natureza, que todos os meses: nasce, cresce, vive, amadurece e morre - cíclica. 

  • “Moça, você sabe do que estou falando, certo?”